terça-feira, 14 de maio de 2024

DESERTO DE CINZAS - CONTO - Uma última chance (parte 1)

Uma Última Chance

Por Thiago "Elendil" (@bs.rpg)

Os gritos de alguém vendendo vermes. O som das moscas perto de seus ouvidos. O calor. Não dava pra dormir mais, mesmo que tivesse tempo para isso. Garrafada se sentou no colchão velho, olhou para o lado, apenas um travesseiro de trapos, Vermelha já estava acordada. Uma luz acinzentada como as dunas entrava por uma fresta na tenda, iluminando Vermelha com Pequeno nos braços. Garrafada, o brilho esverdeado de suas costas chamando a atenção de Vermelha, olhou nos olhos dela e, por um momento, se sentiu em paz, com sorte até, mas logo retornou a sua realidade. Pequeno já estava mal há alguns dias, não comia direito e estava com febre. Talvez fosse alguma mutação se manifestando, mas não dava pra ter certeza e jamais conseguiria juntar chicletes para fazer uma consulta em um médico em Libertas. Tinha que agir agora, fazer algo a respeito.

- Você vai aceitar o trabalho de Lâmpada? - Vermelha olhava para Pequeno enquanto falava, sua voz desanimada.

- Vou sim. Prometo que vai dar certo. – Tentava soar tranquilo, mas era muito ruim em fingir.

Se levantou e bebeu um pouco da água que tinham em uma vasilha velha. Pegou sua faca de sucata, sua mochila velha com algumas ferramentas e se espreguiçou. Respirou fundo. Foi até Vermelha, beijou-a. Beijou a testa de Pequeno.

- Eu volto até a noite. Mesmo que tenha que dar uma escapada, pra dizer como as coisas estão. Compre alguma coisa pra vocês comerem. E, por favor, não dê ouvidos aquela besteira de Eremita Santo. – Falou a última parte com desprezo. Odiava histórias com esperanças falsas.

- Está bem. Mas não posso deixar de ouvir quando eles vêm gritar bem na entrada de nossa tenda. Além do mais, prefiro pelo menos pensar em um lugar melhor. Não vejo problema com isso. Já disse para você que não vamos pra lugar nenhum. – Vermelha foi assertiva, não estava a fim de discussão.

- Tá certo. Tenho que ir. – Beijou-a mais uma vez e saiu. Não queria estender demais aquele momento. Podia acabar desistindo.

O dia estava nublado, apenas alguns feixes de luz dourado por entre as nuvens escuras. Mais esperança falsa, pensou Garrafada. O odor de milhares de pessoas vivendo em tendas sujas, nas Cinzas, com pouca comida e água é algo difícil de descrever, de certa forma, Garrafada já estava acostumado. Não que não se incomodasse, mas não esperava nada de diferente, não se surpreendia mais.

Muitas vozes. Pedindo ajuda. Oferecendo todo tipo de serviço. Falando de doenças, feridas, fome. Nada de bom. Muita gente esbarrando nele, enquanto caminhava resoluto para a cabana de Lâmpada. Cinzas por toda parte, todos cobertos por ela. Era como andar em um sonho, as coisas começavam a se confundir. As Cinzas que cobriam as pessoas, as dunas de Cinzas no horizonte. As vozes gritando, oferecendo salvação, condenação, redenção e sei lá mais o quê. Tudo virava um borrão.

A luz amarela estranha dentro da cabana de Lâmpada fez ele recuperar o foco. Ao entrar, esbarrou em um mutante que saia, ele resmungou e continuou andando. Garrafada não conseguia entender como Lâmpada, que chegou aqui vindo do Deserto há apenas um mês, já tinha conseguido fazer tantas conexões, conhecer tanta gente em Libertas, e agora ficava dando ordens, como um maioral, como se fosse diferente dos outros. As vezes Garrafada tinha vontade de abrir a cabeça brilhante de Lâmpada com um pedaço de ferro, só para ver se ele era tão diferente assim dos outros, para ver até onde aquele ar de superioridade se estendia. Esqueceu aquele pensamento.

- Vou fazer aquele trabalho. - Garrafada falou, tentando não mostrar algum sentimento, mas falhando nisso, como sempre. Dava pra sentir sua raiva. Como olhar para um holofote que tentava não chamar muita atenção.

- Qual trabalho, Garrafada? – Era difícil ver a expressão dele, sua cabeça brilhante as ofuscava os detalhes. 

Você sabe muito bem qual é! Pensou Garrafada, respirando fundo, e disse:

- Pegar aquele pacote no Chiqueiro. – Falou, conseguindo manter a calma.

- Ah. Ótimo! Você é sempre muito confiável, Garrafada, trabalha muito bem. Só precisa aprender a ter uma pouco mais de calma. – Olhou para Garrafada, esperando uma reação. Quando a encontrou, na forma de um piscar de olhos um pouco mais longo, continuou com um sorriso ofuscado: - O contato se chama Melchaia, um médico. Não é difícil de achar.

Garrafada se virou para sair.

- Ei, você vai precisar disso, esqueceu? – Lâmpada colocou 4 chicletes na mesa na sua frente.

Garrafada foi até a mesa e pegou os chicletes, se segurando para não falar nada. 

Ao sair olhou para a mão com os chicletes. Pequenos pacotes da marca “Clop”. Não dava para ler o pacote, mas conhecia a cor verde e o boneco de sorriso sinistro, com dentes coloridos. Ele mordeu um dos chicletes, sentiu uma leve maciez, eram de verdade. Andou rápido em direção as muralhas de sucata de Libertas.

Uma vez seu pai leu um livro velho pra ele. Não lembrava direito, era muito pequeno. Mas falava de um lugar horrível, com muralhas e um grande portão. No portão havia escrito: “Abandonai toda a esperança aqueles que aqui entrarem”. Sempre se lembrava disso quando chegava no portão de Libertas. Queria saber que livro era esse, mas já o tinha vendido há muito tempo.

Enfrentou a fila até a pequena porta, ao lado do grande portão, feito para veículos. Na sua vez, um guarda o parou e estendeu a mão. Garrafada deu uma olhadela no seu rifle laser. Dava pra ouvir um zunido agudo, parecia que ia explodir a qualquer momento.  Sempre quis saber como era usar um daqueles. Entregou os 4 chicletes para o guarda.

Entrou na grande cidade. Onde todos são completamente livres, onde não existem amarras governamentais ou morais. Onde há água, comida, proteção e entretenimento, basta ter chicletes! Pelo menos era isso que dizia numa velha placa na entrada. Ao seu lado, um outro guarda, com cara de poucos amigos. Garrafada achava a placa bastante sincera.

Foi andando rápido, tentando não se distrair com as estranhezas da cidade. Alienígenas, mutantes, robôs, coisas que não conseguia compreender. Estruturas de cristal, onde vivia um tecnomago, uma enorme tenda de circo, onde vendiam drogas. E, a mais estranho de todos, a enorme torre de sucata no meio da cidade. Dava pra vê-la de qualquer lugar lá dentro. Ao caminhar para as profundezas da cidade, passando do mercado, as ruas se tornavam estreitas e haviam escadas subindo em descendo em todo lugar. Era um grande labirinto.

Continua...


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