sábado, 25 de maio de 2024

DESERTO DE CINZAS - CONTO - Uma última chance (parte final)

Por Thiago "Elendil" (@bs.rpg)

Não lembrava onde ficava a entrada para o Chiqueiro. Começou a ficar nervoso, se perder na cidade, sozinho e sem dinheiro, era uma sentença de morte. Soava e respirava com dificuldade, procurando freneticamente, andando o mais rápido que podia. Ao dobrar uma esquina escura, esbarrou forte em alguém, caiu no chão sentado. Enquanto tirava as Cinzas dos olhos, rezava para que não fosse um guarda, ultimamente matavam os de fora por qualquer coisa.

Uma mão estava estendida na sua frente, olhou para cima, procurando sua dona. Deu um suspiro de alívio. O rosto coberto de pelos prateados, com olhos grandes, completamente negros como pérolas, um sorriso sincero. Pegou a mão de Liz e aceitou sua ajuda para se levantar.

- Pensei que tinha dito que nunca mais ia entrar nessa maldita cidade. – Disse Garrafada, fazendo sinal de aspas quando falou as últimas palavras.

- Você disse a mesma coisa. – Liz mantinha o sorriso. Garrafada nunca soube o porquê desse sorriso sem fim.

- Eu não minto bem. – disse Garrafada. Dessa vez, ele sorriu. – Sério Liz, o que você tá fazendo aqui? Achei que tinha ido embora com aquela procissão.

- Preciso resolver umas coisas antes de ir. Você sabe como é. – O sorriso diminuiu, quase sumiu.

- Eu entendo. – Ele entendia mesmo. Essas coisas não se falam, em Libertas qualquer informação a mais pode te matar. – Sabe onde fica a entrada do Chiqueiro?

Ela apontou o dedo para um beco escuro.

- Se mudar de ideia, me procure lá fora. Em alguns dias vamos sair. Existe algo melhor pra gente. Tenho certeza. – O sorriso volto, com uma sinceridade que deixava Garrafada constrangido. Não conseguia dizer na cara dela que aquilo tudo era besteira.

- Tá certo, Liz. Apareço lá se mudar de ideia. – Ele se virou para o beco. – Preciso ir. Boa sorte.

- Estarei rezando por você. Pedirei para o Santo Eremita te guiar. – Ele já estava andando quando ela terminou de falar. Ela se sentia um pouco triste. Gostava de Garrafada, queria que ele acreditasse. Mas, sabia quando devia parar.

O beco era escuro. A luz verde das costas de Garrafada criava uma iluminação doentia, estendia as sombras até ficarem magras e sinistras. Sentia cheiro de sangue. E ouvia barulhos estranhos. Gritos. Não sabia se de alegria ou dor. Mas tinha quase certeza da resposta.

Andou devagar. O chão estava cheio de lixo e os caminhos eram plataformas estreitas de metal enferrujado, construídas acima de um buraco enorme. Cair de uma plataforma daquela parecia terrível. Ele não conseguia ver o fundo, mas parecia que não tinha fim. 

Foi quando passava na frente de um bar, dava saber pela música e gritaria, que algo foi jogado sobre ele, saindo pela porta com um barulho forte. Demorou alguns segundos, deitado naquele chão de metal, para perceber que o que estava em cima dele era um corpo, ainda quente. Sua cabeça tinha um enorme buraco fumegante. Não havia sangue. Arma laser, pensou Garrafada, tentando tirar o corpo de cima dele. Quando finalmente conseguiu, viu dois guardas saindo do bar, procurando mais alvos e desculpas para matar. 

Encontraram ele.

O ar acima do rifle laser, apontado para ele, estava distorcido devido ao calor da arma. O rosto de um dos guardas escondido atrás de uma máscara de gás, o outro atrás de uma bandana. Garrafada ainda estava no chão, e agora tentava se arrastar desesperadamente para longe.

- Espera! Eu não tô armado! – Gritou Garrafada. Ele tinha certeza que ouviu uma risada de um dos guardas.

Ouviu um estalo. Era isso. Ia morrer ali, no Chiqueiro. Sem saber porque. Fechou os olhos. Só conseguia ver ela e o Pequeno.

Nada. Nenhuma dor. Abriu os olhos devagar. Uma luz vermelha forte fez seus olhos arderem. O feixe laser estava parado no ar. Parado no tempo. Assim como os guardas. Estavam dentro do que parecia uma nuvem prateada, brilhante, completamente parados. Era difícil ver detalhes dentro daquela nuvem, ficava tudo distorcido. Se levantou do chão, sem entender nada.

Uma sombra surgiu de uma entrada próxima, rapidamente se aproximando e ganhando forma. Uma figura coberta com um poncho marrom e preto. O rosto tinha um olho a mais, cego, bem acima do olho direito. Era careca. Carregava um revólver. Apontou para a cabeça de um dos guardas e disparou. A bala parou no ar ao entrar na nuvem prateada. Atirou mais uma vez, dessa vez apontando para a cabeça do outro guarda. Mais uma bala parada no ar, desobedecendo desdenhosamente as leis da Física.

O estranho se voltou para Garrafada.

- É melhor sair daqui. Tem mais deles vindo. – Olhava para todos os lados, naqueles becos de matança, procurando por emboscadas e lugares para preparar emboscadas.

- Tenho que fazer um trabalho! – Garrafada limpava o suor enquanto falava.

- Sinto muito. Mas a gente não tem escolha. Lute ou volte lá pra fora! – Ele começou a correr para uma passarela no escuro.

Garrafada se assustou quando ouviu o laser fazer um buraco na passarela. O brilho prateado tinha sumido. Os guardas estavam mortos no chão, sangue se espalhando rapidamente, pingando pelas frestas das passarelas enferrujadas. Caindo naquela escuridão infinita. Sacou sua faca por instinto, mas não tinha mais ninguém ali. A porta do bar tinha sido fechada e o barulho tinha desaparecido.

Ouviu sons de tiros. Gritos de comandos. Tinha que sair dali. Correu por entre as passarelas, enxergando apenas alguns metros a sua frente. Tropeçando, a visão embaçando. Só queria sair vivo dali. Sua chance de conseguir algum dinheiro se foi.

Desviou de uma patrulha, os disparos das armas laser quase o atingiram. Na sua frente, a passarela começava a desabar, perfurada pelos disparos. Pulou. Teve que soltar sua faca para se segurar. Ela rodopiou e se perdeu, caindo para sempre. Se levantou, cortando os braços com a força que fazia naquele metal velho.

Não sabe como conseguiu encontrar o caminho de volta. Estava sujo de sangue, suado e pálido. Tentou se recompor. Começou a andar de volta para o portão.

Pensou em procurar outro trabalho. Talvez como cobaia do tecnomago. Não ia dar certo, queria rever a família. A maioria dos trabalhos de Libertas te deixavam preso para sempre. De um jeito ou de outro. Lâmpada não ia ficar nada feliz.

Aquela caminhada foi mais demorada e assustadora que a fuga de Chiqueiro. O que iria ver quando votasse? O filho com fome e doente. Os bolsos vazios. Vermelha tentando consolá-lo. Sua última chance perdida. Tinha que fazer alguma coisa.

Saiu da cidade e andou na direção oposta à sua tenda. Chegou em túnel nas Cinzas. Na frente dele, uma mulher grande de três braços, armada com uma lança de sucata, o parou.

- Vim falar com Bongo. Vou com ele para o shopping. – Garrafada olhava nos olhos dela. Era como se o feixe laser tivesse ficado marcado nos seus olhos. o brilho era como plasma. A guarda, uma cabeça maior que Garrafada, não conseguiu manter o olhar fixado nos olhos dele. Abaixou a cabeça e o deixou passar.

Lá dentro, Bongo, um mutante grande que mais parecia um homem-elefante, estava contando armas em cima de uma mesa. Vários outros estavam naquele túnel quente, as Cinzas cobrindo tudo. Bongo virou-se para Garrafada. Sua tromba havia sido cortada em praça pública, todo mundo conhecia a história. Como ele havia desafiado Libertas e suas leis e saído vivo.

- Garrafada. Pensou no que lhe falei? – Bongo perguntou de forma gentil.

- Pensei. Vou com vocês. – Não mostrava nenhuma emoção. Embora por dentro queimasse de raiva e tristeza.

- É por uma boa causa. Não estamos sozinhos nessa. Em breve estaremos em um lugar melhor. Bem protegido. O shopping é grande o suficiente para muitos de nós. – Bongo parecia esperançoso. Mas isso não significava muito, parecia sempre esperançoso.

- Só preciso avisar a algumas pessoas. – disse Garrafada. Bongo fez que sim com a cabeça.

Garrafada saiu do túnel. Foi dar as notícias. Se preparar para a luta de suas vidas.




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